terça-feira, 17 de agosto de 2010

Paris dos vivos e dos mortos

Não há dúvidas de que os parisienses têm um interesse fortíssimo pela história. Vejo em toda parte placas indicando os nomes ilustres de gente que morou em determinados prédios: "Antiga habitação de Heloísa e Abelardo... ", "Nesta casa Vincent Van Gogh viveu...", etc. Isso sem contar os museus e as bibliotecas de Paris, que narram a história da civilização por meio das artes e dos livros que, de uma forma ou de outra, apresentam as trajetórias de vida de personalidades importantes.

Construção de uma história para a elaboração de uma identidade social, poderia eu dizer fazendo cara de sociólogo... Contudo, quando penso nesse interesse dos parisienses pelos personagens históricos, descubro outra coisa. O grande problema deles, parece-me, está na relação que os vivos mantêm com seus mortos. Tudo se passa como se as pessoas aqui só existissem na medida em que soubessem que os vivos de hoje moram nas casas dos mortos do passado. Mortos famosos, evidentemente.

Não, não estou falando de religião. Porque essa história que se constrói com as placas afixadas nas paredes dos prédios não é apenas culto aos mortos. O que chama minha atenção é outra coisa: parece-me que os parisienses vêem necessidade de incluir os mortos entre os muitos assuntos que precisam falar para se considerarem civilizados. Como se falar de quem já morreu, sobretudo dos mortos ilustres, fosse uma maneira dos vivos civilizados saberem quem são.

Um francês poderia dizer: sou cidadão da França, e, por isso, sei falar sobre artes, literatura, política etc., etc., etc., e também sobre um bocado de gente importante que viveu na França, como Marie Curie (que, apesar de ter nascido na Polônia, mudou-se para Paris e recebeu duas vezes o Prêmio Nobel), Albert Camus (que era argelino, mas foi um dos grandes escritores francófonos), Jean-Jacques Rousseau (que era genebrino, mas, enfim, foi inspirador da Revolução), blá, blá, blá...

Durante o final de semana, fui visitar alguns mortos. No sábado, passei pelo cemitério de Montparnasse para ver o túmulo de Sartre e Simone. Achei curiosíssimo o que encontrei ali: além das flores, as pessoas também depositam moedas e bilhetes de metrô sobre o túmulo. Não sei por que fazem isso. Vi também marcas de beijo na lápide, coisa que achei que só acontecesse em túmulos como o de Oscar Wilde (que está em outro cemitério, o de Père Lachaise). Mas meu espanto total foi quando vi uma mulher deixar uma foto junto com uma moeda sobre o túmulo e, ao final, falar alguma coisa em voz baixa. Era como se aquele fosse uma espécie de túmulo de santo. E logo com Sartre, que era declaradamente ateu! Coisas da história de Paris...


No domingo, entrei finalmente no Panthéon, que não deixa de ser um cemitério também. Grandioso, majestoso, com estilo neoclássico, mas ainda assim, um cemitério. Foi encomendado por Louis XV, que queria que o edifício fosse a basílica de Sainte Geneviève (Santa Genoveva, a padroeira de Paris). Porém, o governo dos revolucionários decidiu que não seria igreja, e sim um mausoléu para os heróis da França. A inscrição que colocaram no alto da entrada foi: "Aux grands hommes, la patrie reconnaissante" [literalmente: "Aos grandes homens, a pátria agradecida"]. Vejam que a laicização não impediu que o culto aos mortos continuasse a ser prestado...

Achei interessante ouvir o guia, que explicou todo o processo para se panteonizar uma pessoa. O candidato precisa fazer jus ao título de "grande homem", ter algum tipo de reconhecimento público por serviços prestados à nação e, obviamente, ser cidadão francês. Quase um processo de canonização de um santo nacional! Fiquei até curioso para saber que tipo de milagre esses santos patrióticos realizam. Talvez eles façam os selvagens falarem francês (claro) para que se tornem civilizados...

Em particular, queria muito ver o túmulo de Rousseau no Panthéon. Achei que fosse me emocionar ao chegar perto dos restos mortais do morto que estudo, mas não senti absolutamente nada. Só fiquei com vontade de colocar a mão naquele caixote estranho, que mais parecia uma casa de cachorro. Infelizmente, o túmulo é todo cercado por grades ("O homem nasce livre e por toda parte encontra-se a ferros", Contrato Social, livro I, capítulo 1). Acho que eu queria sentir mais de perto a causa material de minha vinda para a França. Ainda bem que fetiche não é coisa de selvagem para os parisienses, que gostam muito de souvenirs...

Aliás, por falar em souvenirs, vi muitos numa lojinha no Panthéon. Além de um busto de Voltaire e das insuperáveis torrinhas Eiffel (sim, elas estavam ali me perseguindo!!!), encontrei também bonequinhos do Pequeno Príncipe. É que o Saint-Exupéry tem uma placa de homenagem ali, apesar de não ser um herói panteônico. Não gosto do Principezinho, pois aquela idéia da raposa de que somos eternamente responsáveis por aqueles que cativamos me causou muitos problemas pessoais... Mas, mesmo assim, penso que talvez o personagem de Saint-Exupéry merecesse um lugar no Panthéon, pelo fato de tratar-se de um dos livros mais lidos de todos os tempos.


Voltemos para o meu morto favorito. Sim, eu queria tocar no túmulo de Rousseau... Mas notei que havia câmeras por toda parte e, como preciso parecer civilizado para poder andar por aqui, limitei-me a tirar fotos. Infelizmente, acabei me esquecendo de deixar uma moeda ou um bilhete de metrô para o morto. Podia ter pelo menos levado flores, já que ele também era botanista... Queria pedir para o Rousseau me iluminar na escrita da tese, porque lá na USP a gente não consegue fazer história da filosofia apenas colocando uma placa com o nome do filósofo estudado na capa do trabalho. Se bem que, ali, a história é outra. Porque os mortos no Brasil não costumam ter placas nas casas e, o que é pior ainda, eles morrem até mesmo em nossas memórias...

7 comentários:

  1. Vejam o trailer de um filme, "Forever", da diretora Heddy Honigmann, que fala sobre vivos e mortos no cemitério de Père Lachaise: http://www.youtube.com/watch?v=l0w74gc4NGc

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  2. Oi Thomaz!
    Nossa! Vc tá passeando por vários lugares interessantíssimos!!!
    Esses souvenirs de 'O Pequeno Príncipe' são muito fofos e lindos!!!
    bjossss

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  3. ai, quero mto ver esse filme. sinceramente, os 3 cemitérios mais famosos de paris valem mto a visita. No Montmartre, o do Dumas é mto lindo. Tinha uma fixação pelas placas, fotografava todas, chorava em algumas, pessoas que "aqui tombaram pela França" tão jovens, onde Descartes passava seus dias em Paris, Hemingway, cada rua era uma vizinhança de lembranças. Continue!!! Aproveite!!!

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  4. "Não há dúvidas de que os parisienses têm um interesse fortíssimo pela história. Vejo em toda parte placas indicando os nomes ilustres de gente que morou em determinados prédios".

    Não seriam as placas, mais que lembranças aos franceses que aprendem, desde cedo, a narrar a biografia destes senhores, apontamentos para os estrangeiros em suas peregrinações mundo afora?

    Outro comentário, talvez fora de ocasião: gostaria de saber mais dos franceses de carne e osso com quem tem estabelecido contato.

    Quem são, o que fazem, como concreta e contextualmente acionam memórias, manifestam opiniões, demonstram preferências.

    E para além da visita aos monumentos, qual tem sido a sua rotina de estudos e de vida. Quais as surpresas, os dissabores, as saudades, os encantos, as expectativas em relação aos colegas de turma nas aulas de idioma, aos achados.

    Um abraço.

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  5. Salut Thomaz, ça marche ?

    En lisant cette petite histoire, l'imagination m'a transporté chez Les Charmettes, une maison proche de Chambéry dans la Haute-Savoie, où Rousseau était habité pendant les années - je crois - qu'il écrivait sa dernière promenade (publié dans son livre : "Les rêveries du promeneur solitaire").
    Si tu as la possibilité de visiter cet endroit, tu pourras marcher entre son jardin des plantes médicinales et d'arbres fructifères. Si tu veux, aussi, tu pourras toucher le lit où le "grand homme" se couchait avec Madame de Warens. Ainsi, tu réussiras finalement à réaliser ton fétiche sauvage ! Mais il faut faire attention, parce que les civilisés, bien sûr, ils iront toujours te prévenir : "monsieur, ne le touche pas s'il vous plaît".

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  6. Pablo, adorei seu comentário! Foi perfeito, genial, bem no espírito do blog! Espero que não se importe, mas vou traduzi-lo, porque este blog é lido também por pessoas que não conhecem francês.

    Olá Thomaz, tudo bem?
    Lendo essa pequena história, a imaginação me transportou para Charmettes, uma casa próxima a Chambéry na alta Savóia, onde Rousseau morava durante os anos - creio - que escrevia sua última caminhada (publicada em seu livro: "Os devaneios do caminhante solitário").
    Se tiver a possibilidade de visitar esse lugar, você poderá andar por seu jardim de plantas medicinais e árvores frutíferas. Se quiser, também, você poderá tocar o leito onde o "grande homem" se deitava com Madame de Warens. Assim, você conseguirá finalmente realizar seu fetiche selvagem! Mas é preciso prestar atenção, porque os civilizados, certamente, irão sempre preveni-lo: "senhor, não o toque, por favor".

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  7. Muito bom! O texto nos transporta para os locais visitados...como pesquisador de Rousseau, também faria o mesmo...mas ´é preciso que se faça, pois está fora de propósito a representação...rsrsrs. Abraço!

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