terça-feira, 31 de agosto de 2010

Estrangeiro, eu?

Em Paris, sinto-me duplamente estrangeiro: na documentação, por ter em meu passaporte o registro de nacionalidade brasileira, e aos olhos dos outros, por parecer um turista japonês. Já causei estranhamento em alguns franceses, que se surpreenderam um pouco com essa incompatibilidade entre quem sou perante as leis e quem eles esperariam que eu fosse segundo os estereótipos que projetam em mim. Mas, tentando ver a coisa pelo olhar alheio, imagino que não deva mesmo fazer muito sentido para os franceses a idéia de que o Brasil possa ter gente com cara de japonês: país confuso, devem pensar.

Sentimento de estrangeiro. Questão de identidade que, apesar de ter aparecido com força na atual situação, não é nova na história de minhas crises. Mesmo no Brasil, eu já me sentia estrangeiro pelo simples fato de não saber lidar direito com minhas raízes nipônicas, nem com a imagem da cultura japonesa que as pessoas próximas, inclusive do círculo familiar, associavam a mim.

Conversei bastante com meu analista sobre esse assunto antes da viagem. Tinha medo de surtar ao ter que enfrentar esse sentimento de "ser estrangeiro" estando tão longe de casa. Algo que pode parecer bobagem para muita gente, mas não para mim. E meu analista sabe disso! É por isso que hoje, após quase dois meses nessa condição de duplo-estrangeiro, posso ter alguma segurança de que não sou tão frágil como pensava e ficar feliz ao perceber-me assim. Ainda não sei quem sou, é verdade, mas isso não me parece agora tão grave. Afinal, somente os filósofos é que se preocupam com essas coisas. Eu quero apenas sobreviver.

De todo modo, não deixo de ficar surpreso com essa constatação. E confuso também. Pois, por mais que eu descubra alguma força em mim, não me sinto forte de jeito nenhum.

Ser estrangeiro é algo que não consigo dissociar do sentimento de fraqueza. Estar em meio a pessoas que sabem que você não pertence àquele grupo, em um lugar onde não se tem legitimidade para contestar as arbitrariedades impostas, sofrendo preconceito de civilizados evoluídos e ainda por cima tendo que depender de gente no Brasil para resolver os problemas que aparecem por lá... Tudo isso faz com que eu me sinta extremamente pequeno, insignificante, impotente, fraco mesmo. E, pior ainda, por me sentir duplamente estrangeiro, fico com a sensação de ser, no final das contas, duplamente fraco!

Mas o fato de eu conseguir suportar as crises interiores sem dar chilique já é um sinal de força. Sei disso. Não posso negar isso. Evidentemente, não é a força de alguém que parece dar passos firmes e saber exatamente para onde vai a cada decisão tomada: de minha parte, sinto como se andasse no escuro, como se a cada movimento eu pudesse cair num buraco ou trombar com um poste. Mesmo assim, a força está ali, sinto que estou vivo e, num certo sentido, sou forte. Porque eu poderia ficar imóvel ou simplesmente fugir para dentro de mim, como às vezes sinto vontade de fazer. No entanto, continuo, ainda que seja só para não ficar parado, avanço para sei-lá-onde por uma espécie de impulso interior, mesmo tateando, pisando em falso, cambaleando ou dando voltas, mesmo sem ver muito sentido no que faço, mesmo sem ver sentido em minha própria história, que às vezes parece ridícula...

Apesar do medo (e medo é o que eu mais sinto na condição de estrangeiro), é como se eu confiasse num final feliz. E vejam que não acredito em finais felizes! Porque sou absolutamente convicto de que a felicidade, assim como qualquer instituição humana que surge em meio às relações sociais, é frágil e passageira. Porém, estranhamente, apesar desse pessimismo tão grande - que, aliás, parece ser a única opinião coerente com meu sentimento de estrangeiro -, insisto em não abandonar a luta, em não "saltar fora da ponte e da vida", como diria Severino. Uma confiança totalmente irracional, absurda mesmo, quase religiosa eu diria, de que as coisas podem dar certo. Uma crença, um dogma, que aceito sem conseguir explicar. É..., talvez eu não tenha me afastado tanto da religião como tento fazer parecer.

Talvez eu sempre consiga olhar para trás, ver o pouco que andei e dizer: andei mais um pouco... Pequeno, fraco, estrangeiro, mas ainda vivo e me movendo! Acho que agora consigo entender um pouco melhor aquela afirmação tão forte e tão comovente da professora Scarlett em sua autobiografia (levando-se em conta, é claro, a desproporção entre a pequenez dela e a minha): "Hoje chego a surpreender-me com o percurso que fiz. Por isso, digo, com certo espanto: sobrevivi." Eu também sobrevivi. E sigo sobrevivendo. Mas a professora Scarlett disse isso pensando em sua busca pelo sentido da vida. Eu acho essa busca muito perigosa, porque ela nem sempre corresponde àquilo que gostaria de encontrar. Além do mais, não quero atribuir à vida um sentido que, possivelmente, ela não necessite ter. Talvez o verdadeiro absurdo seja justamente esse: uma vida que faça sentido...
 
Quanto a mim, prefiro apenas continuar achando graça quando algum francês me confunde com um japonês do Japão, quando erram meu nome ou quando se espantam com o fato de meu passaporte atestar que sou brasileiro. Outro dia entrei num restaurante japonês próximo à Cité Universitaire para comer sushi e achei graça por ser atendido pela mocinha que falava francês com jeito de japonesa, ela também estrangeira como eu (porém, menos estrangeira que eu). Achar graça dessas coisas me faz bem porque me ajuda a esquecer que sou estrangeiro e que minha casa - ah, minha casa (onde será?) - está tão distante, tão longe, que talvez só possa existir agora nos sonhos, mas não neste sonho que é morar em Paris.

PS: Este post é dedicado ao Mauro, meu analista.

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