quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O som do silêncio

Alguns dias antes de vir para Paris, um professor de literatura francesa que sabia de minha viagem despediu-se de mim e disse em tom de brincadeira: "volte francisé".

Voltar afrancesado... Que recomendação interessante! Porque, ao dizer isso, ele parecia um divulgador daqueles cursos de langue et civilisation françaises, nos quais se ensina não apenas como falar francês, mas também como se conduzir em meio a pessoas "civilizadas" (leia-se franceses).

Gosto muito desse professor. Ele é sempre extremamente simpático comigo. Por isso, quero acreditar que sua recomendação tenha sido feita com coração puro. E, de fato, não vejo nele aquele ar de superioridade dos franceses que, ao tomarem como missão difundir sua língua e sua cultura pelo mundo, consideram-se civilizadores. Ainda bem, pois seria muito triste ver um nativo das terras tropicais facilitar o trabalho de dominação de nossos colonizadores europeus.

Mas essa minha birra em relação à "civilisation française" não significa que eu a rejeite sumariamente. De modo algum!

Afinal, não apenas estou adorando viver em Paris, como também sei que só vim para cá porque faço parte de um departamento de filosofia radicalmente "francisé", cujos professores atuais tiveram, quase todos, passagem formativa por universidades na França. Além do mais, não posso esquecer que o autor que estudo - possivelmente ainda com paixão -, Jean-Jacques Rousseau, é considerado um dos melhores escritores de língua francesa de todos os tempos.

Também não posso deixar de reconhecer que, no fundo, gosto de estar entre civilizados. Apesar do esnobismo inerente à civilização, não me parece de todo desagradável conviver com pessoas "francisées". Na verdade, é até mais seguro: a chance de morte numa discussão entre civilizados é razoavelmente baixa, uma vez que as agressões são, em geral, mais verbais que físicas (não que as agressões verbais não sejam mortais algumas vezes, mas, enfim, vocês entenderam...).

Contudo, a segurança tem um preço. Por só saberem falar, os civilizados às vezes falam demais, e isso para mim é um saco. Fico com vontade de morrer com esse desrespeito ao silêncio! Em Paris, mais do que em São Paulo, há muito estímulo para se cultivar aquele tipo de vida social "parlante". Para quem não sabe, refiro-me àquelas pessoas - em geral bastante comunicativas - que adoram exibir conhecimentos gerais para impressionar os outros, como se o próprio ato de falar (não importa o quê) fosse sinal de civilidade.

Civilizados costumam ser assim. Não agem desse jeito por mal: eles são assim, é próprio da cultura deles. Mas curioso mesmo é quando se reúnem em bando: nessas horas, é comum observá-los conversando sobre artes, literatura, música, cinema, teatro, viagens, política, economia, gastronomia e até futebol com muita empolgação, sempre apresentando informações históricas com muitos nomes, datas e narrativas de fatos, além de dados técnicos e descrição de lugares, tudo muito bem articulado em falas rápidas, persuasivas e, quase sempre, temperadas com humor.

Talvez aquele professor de literatura tenha imaginado que eu poderia voltar assim: sabendo sustentar uma conversa de maneira inteligente e eloqüente a despeito do assunto tratado, como se tudo o que realmente importasse para a vida em sociedade fosse falar sobre artes, literatura, música, cinema, teatro, viagens, política, economia, gastronomia e futebol, descrevendo nomes, datas, fatos, lugares etc., etc., etc. Como se tudo o que eu precisasse fazer para provar meu afrancesamento fosse falar, falar, falar...

Ainda bem que sou meio surdo. Porque a incapacidade de ouvir tudo o que os civilizados falam me impede, em certa medida, de falar com eles. E todos sabem que, se não falar, jamais serei civilizado, o que aliás seria ótimo se pensasse apenas nos meus ouvidos. No entanto, não sou (nem quero ser) completamente surdo, ou metaforicamente, não sou (nem quero ser) completamente selvagem. Afinal, eu também gosto de me comunicar - o blog está aí para provar isso - e até consigo falar coisas que interessam alguns civilizados. A questão, na realidade, parece ser apenas esta: qual o limite de minha audição?

Ainda no registro das metáforas, se eu pudesse falar da civilidade como uma doença, diria que seu principal sintoma é a verborréia. Contudo, no caso dessa doença, não desejo estar completamente curado nem ser imune a ela, pois isso significaria não ouvir nada, isolar-me no interior de meu próprio silêncio. Amo o silêncio profundamente, claro, mas isso não significa que eu não goste de um pouco de civilização - queria saber falar de música, por exemplo, e a canção que me vem à memória neste momento é a de Simon & Garfunkel, que fala sobre tocar o som do silêncio...

Bom seria se as duas coisas pudessem se combinar: uma sociedade em que, mesmo sem palavras, a comunicação pudesse ser estabelecida pela troca de olhares, pelos gestos de carinho, quem sabe até pelos sorrisos... (como disse nesse post aqui). As pessoas não falariam tanto e nem por isso deixariam de se relacionar. De todo modo, voltarei ao Brasil meio afrancesado: desse mal não posso me livrar! Mas penso que, se não precisasse falar tanto, se pudesse tocar o som do silêncio, voltaria sem tanta crise.

O vídeo que mais gosto da canção que mencionei está neste link do YouTube:

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