quarta-feira, 18 de agosto de 2010

BnF

Dois amigos me perguntaram como é pesquisar na Bibliothèque nationale de France, e eu fiquei devendo a resposta.

A BnF (é mais fácil a sigla) é um lugar "faraônico", para usar a expressão de uma colega. Enquanto biblioteca nacional (como a Library of Congress, nos EUA), possui em seu acervo tudo o que é publicado na França. A bibliografia da minha pesquisa é quase inteiramente de textos em língua francesa, e, por isso, a BnF é o lugar perfeito para o trabalho na tese. Como em Paris nada é de graça, há uma taxa para usar as salas de pesquisa. Paguei pela carteirinha o correspondente a um ano (27 euros), que é o período que ficarei por aqui.

A BnF é um pouco difícil de utilizar, mas vale muito a pena. Para entrar, deve-se fazer reserva de mesa pela Internet. E o problema é que nunca há lugar livre. Em geral, é preciso esperar alguém faltar - o sistema libera a mesa após meia hora de atraso da pessoa que reservou -, o que sempre acontece, pelo menos agora nas férias. Imagino que as mesas fiquem ainda mais concorridas a partir de setembro, quando as aulas começarem, mas já me ensinaram alguns macetes para aumentar a chance de conseguir um lugar (segredo!).

Nem todas as mesas têm cabo de Internet e, como a biblioteca é freqüentada por civilizados, os cabos disponíveis deveriam ser compartilhados para que todos pudessem usufruir do bem comum. Assim como as teorias políticas democráticas, isso quase sempre funciona na prática. Certa vez, eu estava usando o cabo da mesa da frente, e, quando a mulher que havia reservado a mesa chegou, ficou bravíssima comigo e disse (em francês) que o cabo era dela porque ela precisava e não poderia dividir etc., etc., etc.

Minha ala (no chamado "site" François Mitterrand) fica no prédio oeste, nível "rez-de-jardin". Há uma parte do acervo que é de livre acesso ao público de pesquisadores. Eu costumo ficar na seção de filosofia e religião (sala K) ou na de literatura francesa (sala V), pois consigo trabalhar com muita coisa que encontro nas estantes da própria sala. Mas quando o livro não está disponível, é preciso pedir pelo sistema: em uma hora (mais ou menos) o material chega ao balcão da bibliotecária para ser retirado. Há ainda salas especiais para ler em microfilme: tive que usar uma vez quando pedi um livro muito antigo.

Em suma, não há nada que eu precise ler que eu não encontre na BnF. Mesmo a biblioteca da USP torna-se pequena quando comparada à BnF. As condições de trabalho aqui são muito melhores e a experiência de pesquisar em Paris tem sido maravilhosa. Mas agora, uma anedota, senão este post vai ficar muito chato.

Nunca vou me esquecer do primeiro dia que fui trabalhar na BnF. Eu estava muito feliz por estar ali: havia conseguido um lugar e tudo estava indo muito bem. Até que, às 17h, o alarme do prédio começou a tocar ensurdecedoramente e ninguém sabia o que estava acontecendo. Qu’est-ce qui se passe? [O que acontece?], perguntei ao bibliotecário. E ele respondeu: Je ne sais pas. Accident peut-être [Não sei. Acidente talvez].

Foi curiosa a reação dos pesquisadores. Durante vários minutos, eles apenas entreolhavam-se sem sair do lugar. E, mesmo quando começaram a se levantar das cadeiras, moviam-se lentamente, com muito decoro. Alguns fizeram fila para devolver os livros emprestados no balcão. O Ruy Fausto, um professor da USP que costuma trabalhar na BnF, simplesmente tampava as orelhas com as mãos e fazia uma cara de quem queria silêncio para continuar lendo.

Contar isso agora é engraçado, mas fiquei muito assustado naquele dia. Ainda mais porque, enquanto o prédio era evacuado, saí pela ala errada e dei de cara com as portas trancadas. Não havia nenhum aviso sonoro dizendo que era para pegar a saída de emergência, somente aquele alarme ensurdecedor. E pensar que eu estava em um prédio moderníssimo, que deveria ter um esquema de segurança digno de um país como a França...

Mas, enfim, fomos todos pelo caminho discretamente indicado pelo bibliotecário, em fila, como pessoas civilizadas. Depois, próximo da porta de saída, ouvi uma mulher reclamando com os seguranças, dizendo que havia entrado em pânico. O detalhe é que ela falava tudo com tanta serenidade que, se não tivesse ouvido o que aquela mulher dizia, eu jamais suspeitaria que ela estava com medo.

Os seguranças, por sua vez, também respondiam com total calma, voz baixa, e aquela cara de indiferença que os franceses sabem fazer muito bem. Tive a sorte de conseguir pegar minha mochila, mas depois que saí, vi que várias pessoas estavam com a pasta que a BnF empresta para carregarmos nossos pertences dentro do prédio. Todos esperavam alguma informação para saber quando poderiam entrar de volta e continuar os trabalhos.

Alguns, indiferentes à situação, trabalhavam com seus notebooks ali mesmo fora do prédio, sentados na escadaria diante do Sena. Tive vontade de fotografar, mas fiquei com receio de que eles não gostassem. Além disso, eu havia chegado na semana anterior e ainda não sabia falar com ninguém. Só tive coragem de falar com o Ruy Fausto, que passava por ali pensando algo em voz alta. Cheguei perto e perguntei: O que aconteceu, professor? E ele: Ah, acho que é só uma ameaça de bomba. Puxa vida, bomba! Não era à toa que Paris parecia um filme...

Fiquei imaginando que, se fosse um ataque de guerra, os intelectuais ali presentes teriam todos morrido trabalhando em suas pesquisas! Surreal... Cansei de esperar (eram quase 19h) e acabei indo embora sem ver o desfecho daquela cena. Mas voltei curioso no dia seguinte e perguntei ao segurança o que havia acontecido. Ele disse algo sobre "sécurité". Não entendi porque ele falou muito rápido e fiquei sem jeito de perguntar de novo. Mas como não saiu nada nos jornais, penso que deva ter sido apenas treinamento.



Aqui está a página com o vídeo institucional da BnF. A música dá um pouco o tom do clima do lugar: http://www.bnf.fr/fr/la_bnf/sites/a.bnf_en_images.html

Um comentário:

  1. Que divertido! É assim que os intelectuais na França morreriam... très chique!

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