terça-feira, 21 de setembro de 2010

Noir comme l'oubli

O gato negro no cartaz do cabaré Le Chat Noir em Montmartre tornou-se símbolo da boemia francesa do final do século XIX. Le Chat Noir: representação da belle époque parisiense que, em meu imaginário, era animada por artistas e intelectuais que se divertiam nos cabarés bebendo e assistindo a dançarinas de can-can.

Todavia, para mim, a imagem do gato negro que vejo estampada em cartões, canecas, relógios, porta-copos e ímãs de geladeira nas lojinhas de souvenirs por onde passo tem um significado mais particular que esse da história de Paris. Ela diz respeito, antes de tudo, à lembrança das coisas que o tempo arrasta para a escuridão do esquecimento.

Toulouse-Lautrec
Le Chat Noir: representação de um gato que já não existe mais, a não ser enquanto símbolo do próprio processo que o faz desaparecer. Gato Negro, da cor do tempo que passa e não volta. Noir [pronuncia-se nô-ar], como o momento que foge da luz do presente e, aos poucos, vai deixando de existir para sempre, até mesmo em nossa memória. Não é por acaso que o fundo do cartaz seja de um amarelo luminoso: o gato negro no escuro não poderia ser lembrado.

Sei que essa idéia é complicada, meio obscura... Mas ela apareceu assim mesmo e senti que não deveria enfeitá-la. Tudo começou porque eu queria escrever que, em Paris - a "Cidade Luz" -, sinto falta de gatos.

Gatos aqui, não os vejo nas ruas. É como se não existissem. Por isso fiquei tão emocionado um dia desses quando escutei um miado no metrô e vi um serzinho peludo dentro de uma mala-gaiola. Estava tão escondido que, se não miasse, eu jamais o notaria. Parece que os donos dos gatos em Paris fazem o possível para que os bichanos sejam invisíveis nos lugares públicos.

Ouvi dizer que os parisienses adoram gatos. Mas onde eles estão? Imagino que existam muitos, porém, que vivam todos escondidos por trás das charmosas fachadas que vejo nas ruas desse lugar. Pena eu não poder vê-los com meus próprios olhos. Outro dia estava com tanta vontade de ver gatos que entrei em alguns pet-shops próximos à Notre-Dame: até encontrei um filhote de persa com cara de enjoadinho (será assim um persa-francês?) e me apaixonei. E como era caro: 900 euros!

Queria ter um gato aqui em Paris. Sinto falta da companhia felina. Lembro-me sempre de Theo, o persa que mudou minha opinião sobre gatos. Não era um chat noir, mas recuperá-lo como representação da memória também me faz pensar nos souvenirs que obscurecem à medida que o tempo passa.

Theo veio ao mundo com a dupla-missão de acabar com meus preconceitos em relação a animais domésticos e salvar um casamento. Hoje amo gatos, mas, quanto ao casamento, as coisas eram muito complexas e não seria justo que Theo assumisse uma responsabilidade absurda como essa. Por isso fico tão triste e culpado por ele ter escolhido partir quando viu que não conseguiria cumprir todos os seus objetivos de vida. Não sei o quanto Theo conhecia sobre plantas venenosas para gatos, mas não acho que tenha sido por acaso que ele comeu justamente o lírio que deveria ter simbolizado a paz de seus pais.

Paris é, para mim, um lugar onde os gatos estão presentes apenas nas representações, nas reconstruções que a memória faz de um tempo que tende a se perder definitivamente nas sombras do esquecimento, dans le noir de l'oubli. A falta que sinto de gatos na Cidade Luz (Cidade da Memória, portanto) é também a falta que sinto de um momento que o próprio tempo cuidará de arrastar para os domínios do Chat Noir de Montmartre. E, enquanto ainda tenho alguma clareza nas lembranças, fico olhando no computador as fotos de meu gato com muita saudade.

7 comentários:

  1. Muito linda e triste ao mesmo tempo a parte do Theo. Se não fosse verdade, eu diria que se trata de algúm livro de Cortázar em portugués ou algo assim.

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  2. Puxa, Thomaz, tá de cortázar o coração! [a infâmia também, né? mas você riu dela? ah! então, missão cumprida!] Lindo texto!
    Um beijo,
    Helô

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  3. Helô e Pablo, amei os comentários de vocês!

    De fato, o que há por trás desse texto é muito triste... Mas tentar escrever algo a respeito é, de certa forma, uma maneira de me sentir melhor.

    Fico muitíssimo feliz em saber que esses meus momentos terapêuticos aqui no blog estão sendo acompanhados por outras pessoas. Sinto a companhia de vocês. Que bom... :]

    Achei esse vídeo do Cortázar no qual ele fala sobre algumas impressões dele em Paris, e ofereço a vocês dois: http://www.youtube.com/watch?v=JDfYG0BIsjA

    Abraços!

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  4. Obrigada pelo vídeo, Thomaz! Eu me emociono quando vejo as pessoas que admiro falando sobre as coisas ou quando vejo a letra delas em algum manuscrito. Dá para perceber o olhar ou o posicionamento delas no mundo...Pode parecer bobagem, mas para mim isso tem muito valor.
    Você viu que não estou sozinha em falar do Cortázar pra você? Já visitou a casa onde ele morava? Tira uma foto, Thomaz!
    Sempre que tenho um tempo venho aqui lhe visitar. Seus textos são ótimos e eu gosto bastante dos seus momentos terapêuticos, porque você escreve com o coração.
    Um beijo e até mais,
    Helô

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  5. Oi Helô,

    Você e o Pablo me incentivaram a conhecer Cortázar. Acredita que nunca li nada dele!?

    Mas hoje mesmo vou à livraria Gilbert Joseph para comprar o Rayuela, ou melhor, a tradução, Marelle, em francês. Quero diminuir meu analfabetismo literário e, quem sabe, escrever algo à luz do jogo de amarelinhas...

    Vou seguir seu conselho e visitar a casa onde ele morava. Só preciso descobrir onde fica: mas sei que ele morou na Fondation Argentine aqui mesmo na Cité Universitaire. Também quero andar à noite pelas ruas de Paris para tentar experimentar aquilo que ele relata no vídeo.

    Puxa vida, acho que vocês acenderam uma nova luz aqui em Paris para mim! Merci beaucoup...

    Um milhão de beijos pra você! Thomaz.

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  6. Pronto, encontrei: tudo o que eu precisava saber sobre os endereços de Cortázar em Paris está nesse blog: http://cortazaremparis.blogspot.com

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  7. Adorei mil vezes adorei .......amo gatos , belle époque , Paris sempre Paris !Me entristeci sim mas com beleza (para mim beleza é fundamental ,um poetinha já disse isso)casamentos onde a paixão se foi, memórias que vão se apagando ......o negro plantado no vigor do amarelo .....Amei tudo isso !!!!!!!!Valeu pelo bom gosto eo charme do texto !

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