sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Provincianismo parisiense

Apesar de ser visitada por gente do mundo inteiro, Paris tem um comércio local que confere à cidade um certo ar provinciano. Logo que cheguei, não pude deixar de estranhar o fato de alguns estabelecimentos - dentre os quais bancos - fecharem as portas no horário de almoço.

Outros padrões do comércio também chamaram minha atenção: alguns mercados encerram o expediente antes das 20h, muitos não funcionam aos domingos e, para meu espanto total, durante o período das férias de verão, em agosto, vários comerciantes viajam e só reabrem suas lojas em setembro.

Num domingo à tarde, por exemplo, achar uma padaria aberta em Paris nem sempre é tão fácil como em São Paulo. Essa constatação me remeteu às memórias de outros tempos. Lembro-me de quando os comerciantes de São Carlos, cidade no interior de São Paulo onde cresci, discutiam se as lojas deveriam abrir aos domingos com a chegada do primeiro shopping center em 1997.

Mas algo que me incomoda bastante em Paris (e isso não é apenas um estranhamento, mas também um preconceito meu em relação aos franceses) é a maneira como os clientes são tratados em determinadas situações: em vez de simplesmente realizarem os serviços a que se prestam, certos atendentes parecem ter uma vontade irresistível de estabelecer algum tipo de conversa inteligente com a pessoa atendida.

Bom, até aí, nada de mais: afinal, conversar de maneira inteligente é uma coisa que os civilizados gostam muito de fazer. Eles não conseguem ficar calados, sobretudo quando pensam estar diante de um civilizado como eles, e isso exige de mim uma boa dose de paciência... Mas o problema é que alguns civilizados são mais importunos e, talvez involuntariamente, acabam invadindo a privacidade alheia de uma maneira às vezes até meio agressiva.

Por exemplo, quando fui comprar a passagem para Amsterdam, o senhor da agência de viagem, não contente em apenas checar meu formulário e receber o dinheiro, resolveu estabelecer um diálogo comigo: começou perguntando sobre a origem de meu sobrenome e, depois de estranhar o fato de eu vir do Brasil e não do Japão, quis saber, muito abelhudamente, o que eu estava fazendo em Paris, o que eu estudava, quanto tempo iria morar aqui, etc., etc., etc.

Confesso que me senti bastante aborrecido, porque aquele não me parecia o local apropriado para tal interrogatório, desnecessário e invasivo.

Esse tipo de situação me leva a pensar que o provincianismo de Paris não se resume aos horários do comércio, mas aparece também nos próprios costumes dos comerciantes. Resgatando as memórias dos tempos de São Carlos (de novo), lembro-me dos lojistas locais, que sabiam da vida pessoal dos moradores da cidade e que, por isso mesmo, poderiam receber justamente os seguintes adjetivos: xeretas, intrometidos e palpiteiros.

Em Paris, passei por aborrecimentos causados por comerciantes que me lembravam esses de minha infância provinciana. Felizmente foram poucos e nenhum deles me tirou do sério. No entanto, ontem passei por uma experiência notável num mercado próximo à Cité e que achei que deveria registrar para me curar do rancor.

Fui comprar uma baguette para a janta e, como sempre faço, pedi "celui-là", apontando para a que eu queria. Aí, o francês que me atendeu resolveu me civilizar: começou a me ensinar que aquilo se chamava "pain" (que, no fundo, não passa de outro tipo de baguette) e, pelo tom professoral, fez com que eu me sentisse em plena sala de aula!

Mas o detalhe é que ele queria que eu repetisse a palavra com a pronúncia correta, como se estivéssemos em uma aula de francês e eu fosse um aluno retardado: "pain", "pain", "pain". Para avacalhar de vez com a situação, ele ainda me perguntou se eu era chinês. E isso foi a gota d’água para mim! Ora, quanta estupidez a daquele francezinho idiota não saber a diferença entre um chinês e um japonês, que é tão óbvia quanto a diferença entre uma baguette e um pain!!!


Quando me dei conta do ridículo daquela situação, juro que fiquei com vontade de pegar a faca com a qual aquele fils de pute cortava o pain e dizer: "Excusez-moi, Monsieur, mais je voudrais couper votre gorge, s’il vous plaît..." [Com licença, Senhor, mas gostaria de cortar sua garganta, por favor...]. Felizmente, contive-me, porque estava cercado de civilizados por todos os lados. Na verdade, ponderei que matar alguém assim em público poderia não só me trazer algumas complicações no convívio com os civilizados, como talvez até mesmo atrapalhar o trabalho normal de minha pesquisa aqui na França.

Então, dissimulei (atitude típica nas relações sociais entre civilizados) fazendo um comentário geral da situação, bem do jeito como esses franceses ridículos gostam: "Ah, la baguette et le pain sont différents, hã?!" [Ah, a baguete e o pão são diferentes, né?]. O rapaz, com um ar de superioridade e cara de nojo, deu um daqueles sorrisos que só um francês ridículo como ele sabe dar, e respondeu balançando a cabeça como um cachorro balança o rabo, dizendo: "Oui".

Para não prolongar minha tortura, paguei rapidamente e me despedi: "Merci, au revoir..." Minha reação mais selvagem foi ter saído sem ouvir a resposta dele, porque naquela hora eu não suportaria ouvir mais nenhuma palavra em francês! Não que eu sempre seja assim tão sensível. Em geral, não dou a mínima para esse tipo de humilhação. Mas o fato é que justamente ontem eu não estava bem, sentia-me triste, com saudades dos cheiros das padarias do Brasil, e a última coisa que eu precisava era de mais civilização, coisa que aquele francês nojento achou que estava fazendo o favor de me dar!

Depois desse episódio, lembrei-me de um vídeo que circulou aqui entre os colegas da Maison du Brésil e que foi apreciado por vários (não vou dizer quem gostou e quem não gostou para não comprometer os brasileiros que aspiram ser civilizados). A filmagem deu-se durante um festival de jazz em Montreaux, na Suíça, com a participação de Tom Zé, que resolveu dar um espetáculo à parte pelo fato de ter se sentido humilhado enquanto estrangeiro pelos organizadores do evento.

Preciso confessar que, da primeira vez que assisti a esse vídeo, eu mesmo não gostei. Pois a reação do músico brasileiro parecia-me pura afetação, atestado de ignorância, ressentimento ou mesmo preconceito invertido. Mas hoje, pensando melhor, vejo-o com bons olhos: parece-me muito mais uma maneira - exagerada ou peculiar, pouco importa - de chamar a atenção daqueles que, de tanto humilharem os estrangeiros, já nem percebem mais que fazem isso e, como diz o Tom, passam a agir "vilmente".



Se eu fosse o Tom Zé, poderia dizer para aquele francês ridículo do mercado: "Vá pra porra!" Mas como sou apenas Tom (Jacque, que me abrasileirou, me chamava assim) e não tenho Zé no nome, falta-me um pouco de dignidade de pobre, de sangue quente dos barraqueiros, e, talvez por essa carência, eu acrescentaria uma fórmula de politesse na expressão de meus sentimentos para aquele fils de pute não estranhar tanto: "Vá pra porra, s’il vous plaît". Não seria tão agressivo, mas pelo menos eu não sairia daquele mercado com tanta indignação.

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