quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Descontinuidades

Sinto-me incomodado com as lembranças que não consigo relacionar. Acho que tenho dificuldade para aceitar que os objetos de minha memória podem não estar necessariamente ligados entre si. Pedaços de passado que não se encaixam: deve ser isso que me desagrada.

Quando olho para trás, vejo coisas amarradas que, no entanto, não combinam. Uma seqüência gravada de impressões descontínuas. Recordações que, apesar de estarem numa certa ordem, parecem estranhas entre si. Como é possível tanta disparidade junta? Não sei. Mas talvez minhas lembranças sejam assim apenas e tão-somente porque cada souvenir aponta para uma situação que eu vivi, ainda que cada situação pudesse representar, isoladamente, a vida inteira de um outro que não eu.

O que a engenharia tem a ver com a filosofia? Possivelmente, apenas o percurso que realizei para passar de uma à outra. Mas, de modo geral, duas áreas distintas, duas vidas sem conexão. Numa, leio livros de elementos de máquinas, termodinâmica e mecânica dos fluidos. Noutra, leio a República de Platão, as Confissões de Agostinho, as Meditações metafísicas de Descartes... E o que uma vida tem a ver com a outra? Talvez nada. Ou quem sabe, apenas eu.

No domingo passado, viajei de excursão para Giverny, o vilarejo próximo a Paris onde fica a casa de Monet. Além de algumas telas dentro da casa, vi as flores do jardim, as ninféias no lago, a ponte japonesa. Lugar lindo.

 
 
Contudo, na mesma excursão, passamos depois por Auvers-sur-Oise, e ali visitei a casa onde Van Gogh morreu: o quarto, preservado como na época do suicídio do pintor, parecia-me insuportavelmente fúnebre, triste e sombrio. Lugar feio e deprimente. Cheguei a me sentir mal ali. Duas cidades, duas impressões distintas. E o que Giverny tem a ver com Auvers? Talvez nada. Ou quem sabe, apenas eu.

Penso que o incômodo de lidar com lembranças incoerentes tenha origem num medo. Medo de não me encontrar inteiro em minha história, de não saber remontar a mim mesmo após retirar da gaveta bagunçada da memória as impressões diversas de meu passado. Seria como tentar resolver um quebra-cabeça e, só após muito esforço, descobrir que as peças não formam uma imagem clara e coerente, seja porque algumas delas faltam, seja porque outras não pertencem àquele jogo em particular.

Memória: um amontoado de peças que não têm ligação necessária entre si, ou que talvez estejam ligadas apenas pelo fato de serem peças do jogo de uma mesma pessoa. Para mim, um jogo assustador, porque a cada movimento tenho medo de descobrir que a tão desejada cadeia invisível responsável por amarrar as coisas soltas de meu universo na verdade não existe. Ou, pior ainda, medo de descobrir que, em última instância, a única cadeia de minha história sou eu mesmo.

Andei pensando na tela "Campo de trigo com corvos", do Van Gogh. Quando a vejo, sinto-me absurdamente incomodado (na verdade, nem sei por que comprei o afiche dela para pendurar em meu quarto). Mas, mesmo assim, ela me fascina. Há na imagem elementos bastante perturbadores: o céu escuro e ameaçador, os corvos que anunciam maus presságios, os três caminhos que parecem representar a indecisão diante da necessidade de uma difícil escolha.


Mas o que mais chama minha atenção na tela é o caminho do meio. É esse caminho que corta o campo em dois, que divide o que deveria ser contínuo. Caminho estranho - pois parece não levar a lugar nenhum -, que serve apenas para romper a unidade da impressão que teríamos do campo original. Pensando assim, sinto como se os corvos anunciassem a morte ali no meio do trigo, porque o campo mesmo foi dilacerado, a integridade de um corpo vivo foi destruída. Mais especificamente, a impressão que tenho dos lados separados se confunde com a descontinuidade que experimento em minhas próprias lembranças. Lados separados por um caminho lúgubre que, de certa forma, é indissociável de meu próprio percurso de vida.


3 comentários:

  1. Só agora notei: o campo de trigo tem formato de coração. É como se fosse um coração dividido, cortado em duas metades. Quanta dor nessa tela!

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  2. Thomaz, penso que a única arma contra o medo é sabermos o quanto de verdade somos capazes de suportar; o que não é fácil de saber! Me parece que a morte está associada ao crescimento, ao amadurecimento. E este séjour nos possibilita fazer todos os dias uma avaliação do quanto avançamos nesse sentido. E crescer é "doloroso e angustiante. Primeiro, porque a ousadia de mudar-se a si mesmo envolve cotejar a morte. Na mudança, uma parte de nós perece; um modo de sermos nós mesmos entra em colapso. Segundo, porque enfrentamos a resistência organizada das instituições e a oposição ferrenha de todo o mundo que nos cerca (...) Mesmo que a eventual mudança reduza aspectos negativos das relações e fortaleça características positivas, há sempre, em jogo, o risco de perdas"
    Talvez venha daí o nosso medo. Vejo em você/na sua escrita, ao contrário do que você registra agora, fragmentos de encontros consigo mesmo. Giverny e Auvers sur Oise.Paris e a diferença de tempo/espaço de casa: impossível sermos os mesmos. Que bonito compartilhar do crescimento de alguém! Fico feliz pela sua coragem de abrir as portas dos quartos mais escuros de sua alma para conhecer-se a si mesmo. O seu analista tem razão; a terapia só funciona depois que saimos da sala do terapeuta.Só feche os olhos quando a luz for muito forte, para não se deixar ferir. Seus olhos não estão cansados, só desavisados de que toda essa beleza também é você. Não tenha medo de assistir a todo esse processo. Vou continuar a lê-lo lá de casa, viu? Um beijo!

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  3. Leandra, amei "fragmentos de encontros consigo mesmo". Palavras comuns, porém, pronunciadas na ordem que as torna encantadas e encantadoras! Senti magia no que você disse, minha leitora querida. Beijos, Thomaz.

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