segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Eterna ausência

Confesso que, em Paris, sinto saudade de Deus. Já fui religioso, um crente de verdade mesmo, quase um pastor protestante, e lembro-me que, quando minha fé ia bem, a vida parecia ter sentido, até nas horas de tristeza. Mas agora que Deus é apenas mais um dos fantasmas que habitam em mim, tudo é mais difícil: ser responsável pelo sentido de minha própria história é angustiante, exige de mim muita força interior para lidar com meus fracassos, e suportar o vazio que permeia minha existência só com a razão e sem a esperança de uma redenção futura, é duro demais. O mundo sem Deus é coisa de adulto. Mas, fazer o quê? Pois, assim como eu não poderia evitar envelhecer, não pude evitar que Deus morresse em mim.

Talvez seja por isso que Jesus disse que o reino dos céus é das criancinhas: porque Deus sabia que, quando nos tornássemos adultos, iríamos preferir esquecê-lo. O problema é que, em uma sociedade cristã como a nossa, esquecer Deus é quase o mesmo que ter um pedaço de nosso corpo arrancado. Deve ser por isso que crescer dói tanto, a ponto de, às vezes, eu ter vontade de permanecer criança para sempre, como se assim eu pudesse viver sem dor, e ainda, com a promessa do paraíso... Feliz talvez.

Contudo, sendo honesto comigo mesmo, sei que não poderia ser criança por muito tempo. Porque, egocêntrico como sou, eu usaria Deus infantilmente como des-culpa, isto é, culparia Deus pelas coisas que não acontecem segundo meus próprios desejos. E agora que não tenho mais Deus para culpar, culpo os outros, o que não apenas confirma minha infantilidade, como também mostra que meu problema com Deus é sério, uma vez que replico meu imaginário teológico da punição numa versão laica. Agora não é mais Deus quem me castiga por minhas ofensas, mas os outros. E isso minha experiência tem demonstrado ser trágico, pois, por pior que seja a convivência, sei que não posso viver sem gente ao meu redor. E, assim, talvez haja sentido em se dizer que o inferno são os outros!

Neste domingo, tive muita vontade de voltar para o Brasil. Muita vontade mesmo. Porque não é fácil sustentar o sentido da minha história sem um Deus para me convencer que a vida não é tão absurda como costumo achar. Queria desistir. Mas, ao mesmo tempo, sei que, se eu voltasse, jamais me perdoaria por uma atitude tão covarde. Mesmo porque essa crise continuaria no Brasil. Além disso, fico muito constrangido por saber que há pessoas que dariam tudo para estar em meu lugar, pessoas para as quais uma bolsa de estudos de um ano em Paris seria, no mínimo, sinônimo de infinita felicidade. Como abrir mão de uma chance dessas?!

Sentia-me dividido, ou melhor, dilacerado, porque era como se eu fosse puxado com violência por dois desejos radicalmente contraditórios dentro de mim. Desde julho, nunca senti tanto a falta de meu analista. Não cheguei a ficar desesperado, mas, por um instante, pensei que poderia jogar no lixo tudo que havíamos construído nas conversas que tivemos. Felizmente, lembrei-me do que ele havia me dito antes da viagem sobre tentar dar uma representação para essa minha angústia a fim de torná-la, de alguma forma, um pouco menos terrível para mim. E foi o que tentei fazer, lembrando dos acontecimentos que me levaram a descrer em Deus.

Como o assunto é chato, tentei ser breve.

O que fez desaparecer minha fé em Deus foi a mesma coisa que me levou a crer em Deus: eu queria viver o amor. E não só o amor espiritual do cristão em relação a Deus (que era muito místico para mim, nunca consegui compreender), mas o amor em todos os sentidos nas relações humanas, inclusive naquele sentido que, imaginava eu, levaria duas pessoas a decidirem se casar. Aliás, só comecei a freqüentar uma igreja porque havia me apaixonado per-di-da-men-te por uma moça evangélica de São Paulo, em 1997: ela me convidou para conhecer Jesus... E eu até conheci Jesus, mas amor (no sentido que eu pudesse compreender), que era o que eu queria, ficou na incógnita.

De todo modo, eu era muito ingênuo (recém-formado, um interiorano que começava a trabalhar como engenheiro na capital), e essa experiência me aproximou da vida real, que é feia, mesmo em meio aos mais santos cristãos. Não demorou muito para eu perceber que, entre o que está escrito na Bíblia sobre o amor e o que acontece de verdade nas relações humanas, há um abismo intransponível. Eu até tentei estudar melhor essas questões cursando teologia, mas não deu certo: após dois anos de seminário, o que a Bíblia falava de amor já não fazia mais sentido prático nenhum para mim. Sabia até falar dos vários tipos de amor em grego, mas não fazer o que eu achava mais importante: vivê-los.

Nesse tempo, encontrei por sorte - e não por predestinação, como já pensei - uma pessoa muito especial, Jacque, que me fez pensar, mais do que nunca, que seria possível viver o amor verdadeiramente. E, durante um bom tempo, isso de fato aconteceu: com Jacque aprendi que, para além do sexo, amar era compartilhar as coisas tristes e alegres da vida, sobretudo as mais secretas, com cada um buscando no outro o apoio necessário nas horas mais difíceis. Infelizmente, não soubemos lidar com certas dificuldades inerentes à própria relação do casamento, caímos na armadilha da rotina e, quando percebemos, já era tarde demais: na prática, após oito anos juntos, havíamos nos esquecido do amor.

Que triste essa lembrança! Esquecemo-nos daquilo que mais buscávamos, e que, para existir, dependeria de um empenho de rememoração constante meu e dela... Esquecemo-nos de lembrar do amor. Pergunto: de quem foi a culpa, meu Deus? Não sei responder. Tudo que sei é que, como resultado, o amor que sobrou entre nós é apenas aquele que, em alguma medida, resta em nossas memórias embaçadas pela tristeza, memórias até meio apagadas de tão cheias de  marcas e feridas. Esquecimento: sinônimo de morte, como uma perda irreparável. Em sentido bíblico, foi como ter comido o fruto proibido. Por fim, o sentimento que tenho é o de uma saudade: saudade daqueles primeiros momentos de descoberta do amor, que, assim como nossa inocência, ficaram perdidos para sempre no passado.

Lembrei-me do Rubem Alves, que é até hoje meu teólogo favorito. Ele foi um dos autores que me fizeram querer estudar filosofia. Não só pelas heresias que escreveu, mas sobretudo pelo jeito como ele sabe dizer as coisas que mais me importam. Nunca vou me esquecer de "Sobre deuses e caquis", onde ele fala da teologia, isto é, do discurso sobre Deus, como "celebração de um vazio que nada pode encher". Suas palavras, de certa maneira, me ajudaram a lidar com esse vazio infinito que sinto existir dentro de mim:

"Teologia são os poemas que tecemos como redes sobre a saudade de algo cujo nome esquecemos.

Qual deles é verdadeiro? Poemas não podem ser verdadeiros. Mas devem ser belos.

E é só por isto que eles têm o poder mágico de possuir o corpo. A verdade é o que é; o que está presente. Mas o corpo se inclina para o que não é - Desejo! - o que ainda não nasceu, ou que já morreu, contornos do 'pedaço arrancado de mim'. E me veio esta idéia insólita de que Deus é o nome que damos a esta ausência que habita o corpo..."

Não, não era Deus quem eu procurava. Na verdade, estou em busca do nome que possa habitar e possuir meu corpo, não como um fantasma, mas como um pedaço de mim, como aquilo para o qual se inclina o meu desejo. Desejo que me leva a acreditar em coisas que não existem. O que exatamente isso significa, eu não sei. Mas tenho a impressão de que, quando eu descobrir, terei reencontrado o amor. Não com a pretensão de que seja um amor "eterno" (afinal, quem acredita nessas coisas?), mas um amor que dure enquanto eu conseguir não me esquecer dele de novo.

[A Jacqueline, em memória de nosso amor.]

5 comentários:

  1. A música para este post é "I still haven't found what I'm looking for", do U2 (http://letras.terra.com.br/u2/1/traducao.html).

    Há ainda um texto da Maria Rita Kehl, que saiu como prefácio ou apresentação de um livro do Laerte. Como não tenho acesso a ele aqui em Paris, tive que confiar numa versão que encontrei na Internet. Mas depois eu confiro. É muito bonito...

    Saudades de Deus
    (Maria Rita Kehl)

    Tem um momento na vida em que muita gente deixa de acreditar em Deus. Aconteceu comigo, e a julgar pela curta autobiografia do autor, aconteceu com Laerte também. Nem sempre é por rebeldia que acontece. Às vezes a fé que nos foi incutida na infância simplesmente vai embora na adolescência sem provocar grandes crises. Deus deixa de fazer sentido e sai da nossa vida adolescente, como um dente de leite que cai ou um brinquedo querido que perde o encanto da noite para o dia. Perder a fé assim, sem rebeldia nem raiva, não é fácil. Passados os primeiros momentos de deslumbramento juvenil com a liberdade recém-conquistada, ou com a descoberta do sexo, percebemos que nada ocupou o lugar deixado vago pela Sua graça. Há os que reagem substituindo o nome de Deus por uma causa alternativa, tentando preencher a falta d'Ele com outras idolatrias. Há os que viram malditos, adorando pelo avesso o Bem absoluto que Deus representava.

    Na falta desses expedientes, na ausência de um outro Senhor a quem servir, ficamos mais livres e mais abandonados. A antiga fé deixa uma espécie de saudade. Saudades de Deus, essa grande invenção dos homens. Em todas as culturas em que Ele impera, Deus é o desejo de que haja ordem no mundo. Deus é desejo de sentido. A imortalidade da alma contra a banalidade da morte; o Juízo Final contra as injustiças da vida. O reconhecimento benévolo, vindo de uma instância superior, de nossos modestos esforços para fazer as coisas direito. Deus é desejo de limite para nossos abusos, castigo para nossas maldades e, principalmente, desejo de Alguém que deseje algo de cada um de nós. Faremos de tudo para maior glória de Deus, desde que Ele nos apresente Seus desígnios, nos ofereça um manual de instruções para nossa passagem pelo reino desse mundo, de modo a nos livrar dos enigmas do desejo e da finitude.

    O Deus de Laerte existe porque foi inventado. Perdoa as fraquezas dos homens porque se diverte com elas, e quer que seus filhos se divirtam também; em casos de abuso, de excitação excessiva, limita-se a jogar um balde d'água fria aqui embaixo. Mas sobretudo, o Deus de Laerte não acredita no absoluto. Não representa o Bem, a Moral, a Verdade. Nisso consiste Sua sabedoria. Do absoluto, não pode advir nenhum bem. O absoluto é opressivo, totalitário, intolerante. Em nome dos valores absolutos representados por este ou por aquele Deus, muita gente matou, muita gente morreu. O Deus de Laerte existe para trazer alguma graça a esse mundo que Ele não criou.

    [In: LAERTE. Deus 2: a graça continua. São Paulo: Olho d’Água, 2002.]

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  2. O amor está dentro de cada um de nós e se manifesta de formas diferentes. Mas para isso é preciso ter uma chave que está escondida no coração de outra pessoa. Hiro

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  3. "There's a need in all of us to have a place to hide or to store certain memories, thoughts, impulses, hopes and dreams. These are part of our lives that we cant resolve or act upon, but at the same time we are afraid to jettison them." (Wong Kar-Wai). Pense nisso, pois esta frase me acompanha há muitos anos. Sayonara. Hiro.

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  4. Eu acredito em amor eterno,agora ter a sorte de encontrar esse amor é a parte complicada... É mais fácil ganhar a mega-sena da virada!! Seus textos são encantadores...lindos...

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