segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Mar absoluto


Ontem senti que eu talvez não quisesse estar aqui. Porque, de certa maneira, Paris é como a sala do analista naqueles dias em que faltava-me coragem para falar de certos assuntos. Pois é... Morando neste lugar de sonho, sou levado a pensar em questões que jamais passariam por minha cabeça e que jamais me afligiriam se eu estivesse em condições normais no Brasil.

Posso dizer que, no Brasil, eu fugia de mim mesmo buscando ocupar-me com aquilo que pensava poder chamar de realidade: não uma fuga da realidade, mas uma fuga para a realidade. Como se os problemas práticos da vida, em geral ligados a dinheiro e a carreira no meu caso, pudessem ocupar mais espaço em minha lista de prioridades do que as questões existenciais, que eu relegava ao mundo da ficção, compreendido pelo cinema, pela literatura e pela filosofia. Antes de tudo, era preciso ser forte, como diziam as vozes dos antepassados:

"Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!
"

Mas em Paris, onde ficção e realidade se confundem o tempo todo, vejo cair por terra minha antiga forma de ordenar a vida. Porque os problemas práticos revelam-se para mim absolutamente fictícios, coisas de existência evanescente, vindas de um lugar distante perdido no reino da imaginação, como se dinheiro e carreira é que representassem, de fato, uma fuga da realidade de meu cotidiano francês. Um cotidiano que, sem que eu precise me esforçar muito, me leva a pensar em questões pessoais bastante delicadas - como o amor, a solidão, o sentido da vida -, as quais, estranhamente, adquirem uma concretude inédita, muito pesada para meus sentimentos despreparados; questões que acho difíceis de serem lidadas com meu pretensioso, porém ingênuo, racionalismo de engenheiro.

Em Paris, não tenho para onde fugir. Não posso fugir da realidade, pois ela me cerca por todos os lados, como num sonho. Tampouco posso fugir para a realidade, porque o que antes eu chamava de ficção, agora assola meu corpo materialmente, como se o próprio real da vida que dói na pele se reduzisse aos dramas de romance e às discussões dos filósofos (inclusive política, que eu sempre havia visto como fábula). Não posso nem mais dizer: isto é real, isto é ficção, porque a realidade mesma já não se opõe ao fictício, ela é frágil e fugaz, como uma promessa, um desejo ou uma história inventada. Uma simples mudança de opinião ou um instante de desequilíbrio emocional pode fazer todo o real se desmanchar, como um discurso que se contradiz, como um castelo de cartas que cai com a mais leve das brisas.

Neste domingo, tentei fugir do real indo ao Musée d'Orsay, mas não deu muito certo: ali também havia muita realidade. Mas, ao mesmo tempo, era tudo tão irreal... Que confusão! De todo modo, o mais notável foi que ninguém tenha me influenciado na decisão de ir àquele museu. Fui eu mesmo que escolhi. Planejei tudo durante a semana e juro que desejei realmente esse passeio. Mas quando entrei e comecei a olhar as obras - as telas de Courbet e de Gauguin, as esculturas de Carpeaux, e toda aquela arte produzida por outros tantos nomes que simplesmente não faziam sentido real para mim -, era como se eu não quisesse estar ali. Logo me aborreci. Queria fugir. Mas não podia mais, porque eu sabia que, independentemente de onde eu fosse, não poderia escapar de mim mesmo e, por conseguinte, de toda a realidade que, por alguns instantes, eu gostaria de esquecer.

Deve ser por isso que fiquei me lembrando do poema "Mar Absoluto", da Cecília Meireles. Porque nele, Cecília fala de uma fuga para além da realidade ilusória da terra firme ou dos pescadores mortos que pedem rezas: é a busca de um outro mar, muito difícil de se encontrar porque só aparece mediante uma revelação interior, quando, após converter-se a si mesmo ("estudo a solidão"), o eu do poema consegue coragem para querer conhecer esse mar diferente, que, para mim, simboliza o encontro real da poetisa consigo mesma. Um mar com "face espantosa", onde tudo é "sobre-humano", e que, com um profundo senso de realidade (afinal, a realidade não é assim, espantosa, sobre-humana?), Cecília chama de Mar Absoluto. Li esse poema centenas de vezes, e, a cada leitura, um trecho em particular me toca. Desta vez, foi a parte final, que é justamente o momento da conversão do eu e da revelação do Mar Absoluto.

E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.

Um comentário:

  1. Mar Absoluto
    (Cecília Meireles)

    Foi desde sempre o mar,
    E multidões passadas me empurravam
    como o barco esquecido.

    Agora recordo que falavam
    da revolta dos ventos,
    de linhos, de cordas, de ferros,
    de sereias dadas à costa.

    E o rosto de meus avós estava caído
    pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
    e pelos mares do Norte, duros de gelo.

    Então, é comigo que falam,
    sou eu que devo ir.
    Porque não há ninguém,
    tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

    E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
    Tenho de levar-lhes redes de rezas,
    campos convertidos em velas,
    barcas sobrenaturais
    com peixes mensageiros
    e cantos náuticos.

    E fico tonta.
    acordada de repente nas praias tumultuosas.
    E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.
    "Para adiante! Pelo mar largo!
    Livrando o corpo da lição da areia!
    Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!"
    Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
    A solidez da terra, monótona,
    parece-mos fraca ilusão.
    Queremos a ilusão grande do mar,
    multiplicada em suas malhas de perigo.

    Queremos a sua solidão robusta,
    uma solidão para todos os lados,
    uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
    e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

    O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
    que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

    O mar é só mar, desprovido de apegos,
    matando-se e recuperando-se,
    correndo como um touro azul por sua própria sombra,
    e arremetendo com bravura contra ninguém,
    e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
    por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

    Não precisa do destino fixo da terra,
    ele que, ao mesmo tempo,
    é o dançarino e a sua dança.

    Tem um reino de metamorfose, para experiência:
    seu corpo é o seu próprio jogo,
    e sua eternidade lúdica
    não apenas gratuita: mas perfeita.

    Baralha seus altos contrastes:
    cavalo, épico, anêmona suave,
    entrega-se todos, despreza ritmo
    jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado,
    cego, nu, dono apenas de si,
    da sua terminante grandeza despojada.

    Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
    água de todas as possibilidades,
    mas sem fraqueza nenhuma.

    E assim como água fala-me.
    Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
    e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

    Não me chama para que siga por cima dele,
    nem por dentro de si:
    mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.
    Não me quer arrastar como meus tios outrora,
    nem lentamente conduzida.
    como meus avós, de serenos olhos certeiros.

    Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
    plástica, fluida, disponível,
    igual a ele, em constante solilóquio,
    sem exigências de princípio e fim,
    desprendida de terra e céu.

    E eu, que viera cautelosa,
    por procurar gente passada,
    suspeito que me enganei,
    que há outras ordens, que não foram ouvidas;
    que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
    e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

    Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
    mas outro, que se parece com ele
    como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
    E entre água e estrela estudo a solidão.

    E recordo minha herança de cordas e âncoras,
    e encontro tudo sobre-humano.
    E este mar visível levanta para mim
    uma face espantosa.

    E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
    E é logo uma pequena concha fervilhante,
    nódoa líquida e instável,
    célula azul sumindo-se
    no reino de um outro mar:
    ah! do Mar Absoluto.

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