quinta-feira, 12 de julho de 2012

Viagens, eu as odeio

Sena visto do Quai aux Fleurs, em julho de 2010

Há exatos dois anos, conheci minha primeira Paris. E hoje, justamente hoje, reli o texto do Freud sobre a viagem à Acrópole. Mas algo mudou na leitura... Desta vez, a passagem que me chamou a atenção foi esta:

"Havia muito eu percebera que boa parte do prazer de viajar consiste na realização desses velhos desejos, isto é, tem raiz na insatisfação com a casa e a família. Quando pela primeira vez vemos o mar, cruzamos o oceano, experimentamos como realidades países e cidades que foram, durante muito tempo, inatingíveis e distantes objetos de desejo, sentimo-nos como um herói que levou a cabo inacreditáveis façanhas." *

Quem conhece o referido texto sabe que esse herói é peculiar. Diferentemente da imagem do valentão que festeja as conquistas, o herói de que fala Freud é um neurótico que carrega na alma o sentimento de culpa por ter ido longe demais. **

É como nas tragédias gregas, quando se paga o preço por desejar mais do que os deuses permitem: o herói em questão é aquele que não se satisfaz com sua condição, vai além dos interditos e, por isso mesmo, fracassa no triunfo. Pois ter sucesso, neste caso, significa destruir os vínculos que o prendiam ao lar sagrado e, ao mesmo tempo, ter consciência da responsabilidade e dos efeitos dessa destruição.

No fundo, uma profanação. E com direito a mito. O herói de Freud é um viajante e, enquanto tal, tem uma história para contar. Mas essa história não causa júbilo, nem ao menos nos faz sorrir. Na verdade, nós a ouvimos em tom grave, pesaroso. É como um luto. Pois as "inacreditáveis façanhas" devem ser rememoradas por meio de seus vestígios - fragmentos de vida embaralhados que só se ordenam em nossa consciência à custa de muito trabalho e muita dor.

Resta então pensar: seria possível repetir o sucesso? Ou, o que dá no mesmo: suportaria eu a culpa de realizar outra viagem e retornar de novo como um "herói" freudiano? Pergunta irresistível, dado meu desejo de ir sempre além do que posso, muito embora eu desconfie fortemente que minhas histórias serão, mutatis mutandis, sempre as mesmas. De todo modo, seja qual for a resposta, uma coisa certamente vai faltar: a inocência - ou a ingenuidade - para viajar acreditando num final feliz, como na primeira vez.

______
* "Um distúrbio de memória na Acrópole (Carta a Romain Rolland, 1936)". In: Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 18. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 447-448.

Um comentário:

  1. [São Carlos, 23/02/2013, véspera da mudança para Aracaju:]

    A cada viagem, perco um pouco do "maravilhoso sentimento de irrealidade". O que não deixa de fazer sentido, pois não se pode sonhar a vida inteira... De todo modo, é duro pensar que a saudade também é dessas coisas que passam. A impressão neste momento é de um progressivo desencanto, mas talvez ainda não tão forte como o do sábio catalão de Cien años de soledad, que apareceu em Macondo fugido "de uma das tantas guerras" de seu país. É na terra maldita dos incapazes de amar que esse estrangeiro instala a livraria "de incunábulos e primeiras edições em vários idiomas", onde lia Sêneca e Ovídio e convivia com quatro debatedores, seus únicos amigos da vida.

    Misterioso como o cigano Melquíades, era "encastelado na realidade escrita" e trabalhava no fundo da loja, desenhando garranchinhos roxos em folhas e mais folhas arrancadas de cadernos escolares que ninguém sabia o que significavam. Essa improvável (?) história de vida que nos conta Gabo termina tristemente quando o sábio solitário decide acabar com seu autoexílio. Vencido pela "saudade de uma primavera teimosa", embarca de navio para Barcelona e, durante a viagem rumo à sua aldeia natal, vai perdendo o "maravilhoso sentimento de irrealidade" até descobrir que seu problema não era com os lugares, mas com o sofrimento de saber que o refúgio buscado não se encontrava em parte alguma.

    "Nas noites de inverno, enquanto fervia a sopa no fogão, desejava o calor dos fundos da loja, o zumbido do sol nas amendoeiras empoeiradas, o apito do trem na sonolência da sesta, da mesma forma como desejava em Macondo a sopa de inverno no fogão, os pregões do vendedor de café e as cotovias fugazes da primavera. Aturdido por duas saudades colocadas de frente uma para outra como dois espelhos, perdeu o seu maravilhoso sentido de irrealidade até que terminou por recomendar a todos que fossem embora de Macondo, que esquecessem tudo o que ele ensinara do mundo e do coração humano, que cagassem para Horácio e que em qualquer lugar em que estivessem se lembrassem sempre de que o passado era mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável e que o amor mais desatinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera." (Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão, trad. Eliane Zagury, Record, 1996, p. 381)

    ResponderExcluir